Ontem, vindo do nada, um amigo meu, que vejo apenas de vez em quando, disse-me em conversa no messenger, que "me admirava". Admirava o trabalho que faço e a importância do mesmo. Fui apanhada de surpresa porque não costumo falar de trabalho com ele. É daqueles amigos das noitadas de verão na Pastorinha e nos Gémeos... onde não há lugar para essas conversas. Percebi que tinha estado a conversar com uma amiga minha, essa sim, ouvinte das minhas histórias de alegria e angústia no dia-a-dia de trabalho... e que ela lhe havia contado alguns episódios do mesmo (amiga essa que adorava ser enfermeira... mas ainda não conseguiu... talvez um dia...).
Bom, na verdade fiquei a matutar na conversa, curta mas inexplicavelmente intensa naquele momento particular. Enviei até um sms a um amigo, dizendo que às vezes sinto que a realidade com que me cruzo no meu percurso como enfermeira é demasiado avassaladora para mim. Temos fases... Sei que ando mais cansada (estou com obras em casa...) e sinto que influencia também a minha perspectiva das histórias que se tecem à minha frente naquele serviço, naqueles quartos. Vidas que as palavras não alcançam. Sinto que estou particularmente sensível. Mas também sei, como disse hoje no serviço, que não está fácil andar por lá. Muitas são as histórias tristes, as vidas desgarradas de sentires, as mortes com sofrimento... Aqueles pequenos momentos que nos fazem sorrir existem, existem sempre, mas há alturas em que não parecem suficientes.
Pensar aquele homem, nos seus 47 anos de idade... em fase terminal de um carcinoma de bexiga e recto, submetido a todo o tipo de intervenções cirúrgicas e neste momento, já colostomizado e urostomizado, é duro. Mais ainda quando o seu internamento foi um apelo do médico que receava que o senhor falecesse em casa, diante do filho de 8 anos, que o cuidava... sim, 8 anos... porque a mãe tinha de trabalhar todo o dia. "Tem um feitio complicado", dizem. Respondo que também eu teria. Hoje diz que o tumor lhe rebentou. Na realidade não sabemos que líquido é aquele que drena. Mas olho para ele e se não fosse pelos movimentos torácicos durante o sono, pensaria que não está já entre nós. Os olhos perderam o brilho que outrora concerteza tiveram. A pele está baça. O corpo... o corpo reduz-se a um conjunto ósseo de frágil aparência. Seria mais fácil desviar o olhar para não ver... mas não se torna possível.
Aquele outro senhor... os gemidos contínuos ecoam pelo serviço corroendo a alma de quem os escuta. Abdómen distendido, tenso... prestes a rebentar. Anúria. Pele ictérica. Aquele senhor que outrora protestava por tudo... agora agradece qualquer procedimento doloroso que posteriormente lhe alivie um pouco a dor. O CVP que se exterioriza. Como seria de esperar, acabaram-se as veias. Um CVC? Não, "não vamos investir". Apelamos à equipa médica por um sedativo e analgesia adequada, mas a médica está tão ou mais longe que o senhor, alheia à realidade daquele "ali e agora", e não deixa nada. A minha esperança é que o próximo médico a chegar não faça o mesmo. A declaração, infelizmente poucas vezes explícita no processo, de se optar por não realizar mais procedimentos invasivos. Vamos deixá-lo partir em paz... mas sem dor! Por favor, sem dor!
A ajuda que damos também e os insultos e agressões que recebemos... e a capacidade de manter um discurso calmo e apaziguar os ânimos. Tudo termina com um silêncio de agradecimento e de conforto. Não se admite. Mas percebe-se.
Aquele quase tocar nas costas do doente que é travado repentinamente por um grito: "tenho de calçar luvas, o sr tem Hepatite B"! Palavras que corroem... daquela médica que também não anda por cá. Digo-lhes, às alunas que se iniciam nestas andanças e que se têm apercebido já que não é fácil, que ficaria muito triste se as ouvisse dizer algo assim alguma vez. Apetece-me escrever a definição de métodos de protecção individual... e os modos de transmissão das diversas doenças infecto-contagiosas... e afixá-lo na sala dos médicos. Para alguns, é verdade, a maioria (menos mal!) não pensam assim, pelo menos não onde trabalho.
E vão-se desenrolando as histórias. A cada turno que passa uma nova vivência... A degradação de uma vida repleta de amor ou de ódio. De vidas que não conseguimos alcançar. Daquele senhor que já lá tinha estado internado por um abcesso provocado pela agulha que ficou, espetada no pescoço, após uma mal sucedida administração de drogas pelo próprio... senhor que, aquando da alta, atravessa os muros do hospital e dirige-se para as ruas circundantes procurando o dinheiro a todo o custo, vendendo-se... dando-se... a troco de uma viagem a um mundo de ilusório prazer.
Que podemos fazer nós?...
E vou sendo... tentando ser... a melhor enfermeira que consigo ser. Às vezes, no entanto, a pessoa por trás dessa enfermeira ressente-se... e o cansaço não é apenas físico. Mas enquanto gostar do que faço, vai valendo a pena. Mesmo nos dias menos bons.
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