Sunday, January 8, 2012

Apetece-me falar de si. Com períodos de um trato rude, de protesto com os cuidados recebidos ou com a desorganização do serviço, tudo acalmava quando recebia um pouco de atenção e alguém conversava um pouco consigo. A sua doença, em estadio terminal, "comia-lhe" o sangue que lhe dávamos a uma velocidade exasperante e os benefícios que as transfusões lhe traziam duravam apenas alguns dias... dias esses em que se sentia revigorado, cheio de energia e força, acreditando que tudo poderia ficar bem. Numa das nossas conversas falou-me dos seus gatos. Notei no seu tom uma saudade imensa, um amor não mensurável, um desejo enorme de os ver. Falei com a equipa. Podíamos propôr à família que trouxesse os gatos até ao serviço mas o senhor, quando confrontado com essa ideia, disse logo que lhe parecia difícil, porque achava que nem a filha nem o neto conseguiriam apanhá-los para os pôr no meio de tranporte adequado. Nova conversa, desta vez multidisciplinar. Quando parar em relação a este senhor? Ainda que as transfusões acarretassem benefícios, eram a demasiado curto prazo e o sangue é um bem essencial que não pode ser usado sem critérios. A decisão: última transfusão, para permitir que o senhor recuperasse o "fôlego" para se deslocar na companhia da família a casa e passar o dia com os gatos. Algo aparentemente tão banal, tão irrisório. Regressou com um sorriso que nunca lhe tinha visto. Ainda que sempre tenha sido difícil para si compreender que a sua morte estava perto (negação talvez, de um prognóstico que ninguém quer para si...) algo parecia prendê-lo cá. Aquele sorriso emanava calma, tranquilidade, ponderação. Dois dias depois regressou em força o cansaço, a diminuição da força... e tinha chegado o momento de parar. Não mais sangue, como se tinha decidido. Apenas medicação para quem, demasiado consciente de tudo o que se passava à sua volta, via o momento final a aproximar-se... evitando dor, evitando dificuldade respiratória... Tudo se passou rapidamente, muito mais rapidamente do que qualquer um de nós estava à espera. E calmamente... Creio que fez a sua despedida, concretizou o seu último desejo. E na companhia de uma família que, durante algum tempo, teve atitudes que são difíceis de entender... mas que também "quebrou" perante o carinho que, creio, se apercebeu que lhe demos durante o seu internamento. O seu sentido para a vida foi, sem dúvida alguma, também o sentido para uma serenidade na morte.

2 comments:

Mara said...

Minha querida, esta história é tão bonita!é um hino à nossa profissão!!e ao teu profissionalismo!
tens que começar a reunir estas histórias e editar um livro!!!já tenho título "enfermagem porque sim"! LOL
beijinho grande grande...

Bela Isa said...

Oh minha amiga linda... obrigada por me leres... :) Sim, uma história bonita... mas daí a fazer um livro... mmmm... talvez, quem sabe. O título é que não sei se seria esse... ;) Beijocas grandes!!!