Sunday, December 30, 2007

Abandonando-me nas ruínas das brincadeiras...

"- Nunca te vejo chorar, Sheila. Nunca sentes vontade? - perguntei.
- Nunca choro.
- Por que não?
- Ninguém pode magoar-me dessa maneira."

"Por fim, ela levantou o rosto.
- Às vezes sinto-me muito sozinha.
Assenti com a cabeça.
- Achas que vai parar um dia?
Voltei a esboçar um aceno de cabeça vagaroso.
- Sim, acho que sim, um dia - respondi.
Sheila suspirou, afastou-se de mim e levantou-se.
- Um dia nunca chegará, pois não?"

"- Vai-te embora - disse num tom baixo mas firme, por entre os dedos.
- Porquê? Porque estás a chorar?
Baixou as mãos e olhou-me de fugida.
- Não - respondeu. - Porque não sei o que fazer."

"Corre-se o risco de chorar quando se deixa que alguém nos cative. Acho que é normal.
Sheila premiu os lábios e limpou o resto das lágrimas do rosto.
- Ainda dói muito, não é?
- Oh, sim! Dói muito."

"- Lembra-te de que me cativaste. - Sorri. - És responsável por mim. Isso significa que talvez choremos um pouco agora. Mas dentro em breve, só nos lembraremos de como fomos felizes juntas."

A criança que não queria falar - Torey Hayden

Excertos de um livro que recomendo. Devorei-o em 2 dias. Uma criança "difícil", uma aula de malucos, uma professora cheia de força e sonhos. A crueza de uma vida real e tudo o que o amor pode fazer para abrir novos caminhos.

Termino, com aquilo que conclui também o livro. Quando o lerem, perceberão a força deste poema.

Todos os outros vieram
Tentaram fazer-me rir
Brincaram comigo
Algumas vezes para rir e outras a sério
E depois partiram
Abandonando-me nas ruínas das brincadeiras
E eu não sabia quais eram a sério
Quais eram para rir e
Vi-me sozinha com os ecos de risos
Que não eram os meus.

E depois tu chegaste
Com os teus modos estranhos
Nem sempre humanos
E fizeste-me chorar
E não pareceste importar-te que chorasse.
Disseste que as brincadeiras tinham acabado
E esperaste
Até que as minhas lágrimas se transformassem
Em alegria.

A Torey com muito «Amor»

Friday, December 28, 2007

Hei-de querer... sempre.

Quero.
Queremos tanta e tanta coisa... coisas simples, coisas menos simples, coisas deveras complicadas.
Um amanhecer, diário, de uma casa virada para o mar, com uma janela imensa onde me abeiro e fico, sentada, em êxtase... arrebatada pela cor, o cheiro de maresia, a musicalidade do ondular e desfazer das ondas contra as rochas.
Um acordar envolta num abraço apertado e um beijo de "bom dia". Preenchida por um ar respirado a dois. Aquecida por um calor que não o meu... ou apenas o meu.
Um balão, sim, um balão de ar quente que me levante para aquele tecto azul que está por cima de nós... de onde possa ver, quando me apetecer, o mundo de outra perspectiva. Quando me sentir triste por o sentir tão pequeno, tão vazio de liberdade e ingenuidade, lá encima vou perceber o contrário (?).
Uma viagem, eterna. Visitar cada recanto, cada pessoa, cada animal. Aprender mil e uma línguas. Saber falar todas elas e conhecer todas aquelas expressões especiais.
Ser enfermeira por esse mundo fora. Hoje cá, amanhá onde precisarem de mim e não ter de me preocupar com salários... porque tenho tudo o que preciso para viver, no sentido lato da palavra.
Uma festa, grande, contínua. Com os meus amigos bem perto. Vida do quotidiano, com eles.
Dança, encima do palco, para toda a gente ver. Movimentos suaves, ou não, coordenados, elegantes. Os meus movimentos e eu esvoaçando ao som de todo o tipo de música.
A mão dada e o eterno passeio. Falando de tudo e expressando tudo o que vai cá dentro. Sorrindo e chorando. Tocando levemente e de forma mais intrusiva, também.
Sol. Um ano inteiro de sol, com chuva onde ela é precisa mas não por cima de mim. Frio e calor, mas sol. E a envolvência daquela luminosidade só dele.
Reuniões de família e gargalhadas. Cheias de histórias para contar.
A minha fusão com outro. Num inesperado mas meigo encontro de duas pessoas. Sem palavras e com todas as palavras do mundo. Onde o entendimento é inato, surge espontâneo e tranquiliza pela certeza de me saber protegida e protectora.
Perceber, todos os dias ao acordar, que por cada momento triste, existem 1000 momentos de felicidade.
Quero.
Porque no verbo querer existe esperança e anseio, força para alcançar, ingenuidade para achar que é sempre possível, possibilidade de não conseguir. Eu quero.
E hei-de querer, sempre. Viver de sonhos e de momentos reais, é viver. Querer apenas o que sabemos ser totalmente possível é perder a capacidade de verdadeiramente querer ir mais além. Querer um dia voar, não é saber que vou voar, é ter a capacidade de me imaginar a fazê-lo, sem medo. Se não conseguir, imaginei. Mas quis. Baixar os braços e desistir... é contentar-me. E isso é ir existindo por este mundo fora... mas não vivendo.

Se não puderes ser um pinheiro, no topo de uma colina,
Sê um arbusto no vale mas sê
O melhor arbusto à margem do regato.
Sê um ramo, se não puderes ser uma árvore.
Se não puderes ser uma ramo, sê um pouco de relva
E dá alegria a algum caminho.

Se não puderes ser uma estrada,
Sê apenas uma senda,
Se não puderes ser o Sol, sê uma estrela.
Não é pelo tamanho que terás êxito ou fracasso...
Mas sê o melhor no que quer que sejas.

("Sê" - Pablo Neruda)

Eu quero... ser.
(Não queremos todos?...)

Thursday, December 27, 2007

... espaço vazio pela ausência e cheio pela memória ...

Em plena noite, 3h30 da manhã... mais uma noite no serviço. Um serviço cheio... pesado. Histórias tristes em datas que se sentem como de alegria. Pessoas que escutam uma sentença definitiva... de meses, de dias. Não irá melhorar. A dor... vai-se controlando. Moscas que voam anunciando uma possibilidade. E vão partindo. Abandonando este mundo e quem fica por cá, chorando-os. Não o corpo inerte que fica, mas a alma que vai. As vivências, os sentimentos, as rotinas do dia-a-dia. A saudade instala-se. Cria-se então essa distância, tão grande e tão pequena, entre a vida e a morte. Esse espaço vazio pela ausência e cheio pela memória.
Eu, entretanto, caminho para o home alone. Os meus pais ainda por cá andam e eu vou aproveitando os miminhos, a comida da minha mãe, os almoços e jantares na companhia deles. Mas em Janeiro regressam para terras alpinas deixando-me sozinha em casa. O meu irmão e a minha cunhada já se mudaram e eu vou sentir de novo o que é ter a casa por minha conta. Vai ser bom, sentir essa independência, ainda que relativa. Poder gerir aquele espaço sem grandes justificações para além das que dou a mim mesma. Levar quem quiser, às horas que quiser, sem ter receio de incomodar.
Hoje fiquei também feliz porque levei os meus pais "à minha prenda de Natal para eles". Ao teatro! Amanhã saberei se gostaram!
Bom, vou esticar as pernocas... daqui a nada cá estamos de novo para acordar estes senhores, de uma maneira pouco agradável, por muito meiga que seja...

Monday, December 24, 2007

O essencial é invisível aos olhos.

Dentro de poucas horas é a noite de Natal. Aqui, no Porto, no aconchego da minha família, vivo-o sempre com alegria e surpresa. Este ano a mesa foi posta para 26 pessoas... com as conversas, os abraços e os beijos trocados, viveremos o essencial... sim, o essencial... aquilo que é "invisível aos olhos"...
Longe dos amigos, sinto-os também bem perto. Em mensagens trocadas e telefonemas, estão sempre aqui ao meu lado. Vocês são também o que me torna mais feliz esta noite.
O Natal sempre foi uma data especial para mim, por ser esta imensa reunião de família que a vida de todos os dias separa fisicamente. Ao longos dos anos, com o nascimento dos meus primos, a mesa tem-se tornado cada vez maior e o calor humano sentido na noite de Natal e almoço de dia 25 é qualquer coisa que não consigo explicar.
É verdade!... alguns têm-me dito que já encontraram o Pai Natal... e vocês?... Eu estou à procura, mas algo me diz que só lá para a meia-noite, a descer pela chaminé!... estarei atenta...
Magia, surpresa, imaginação, carinho, força... inspiro tudo isto hoje. Prometo expirar depois, com força...
Feliz Natal!
Se eu voar sem saber onde vou
se eu andar sem conhecer quem sou
se eu falar e a voz soar com a amanhã
eu sei...
se eu beber dessa luz que apaga
a noite em mim
e se um dia eu disser
que já não quero estar aqui
só Deus sabe o que virá
só Deus sabe o que será
não há outro que conhece
tudo o que acontece em mim
se a tristeza é mais profunda que a dor
se este dia já não tem sabor
e no pensar que tudo isto já pensei
eu sei...
se eu beber dessa luz que apaga
a noite em mim
e se um dia eu disser
que já não quero estar aqui
na incerteza de saber
o que fazer, o que querer
mesmo sem nunca pensar
que um dia o vá expressar
não há outro que conhece
tudo o que acontece em mim
("Eu sei" - Sara Tavares)
(Não a sinto intensamente pelo seu lado religioso mas pela música e melodia maravilhosa que é... uma grande música, uma grande letra - com múltiplas interpretações -, uma grande voz)

Tuesday, December 18, 2007

... o riso do Pai Natal ...

Numa casa gelada, porque não gosto de me pôr a usar aquecedores e gastar electricidade à toa, podendo estar com a mantinha e uma roupinha mais quente. Um frio que percorre as costas (já diz a minha avó: "não sei como aguentas, andar sempre assim com os rins à mostra!") e a vontade de ir já para o aconchego do edredon e da minha almofada (porque a minha é diferente das outras, tem aquele molde da minha cabeça, aquela cova onde a minha cara se ajusta perfeitamente... e é baixinha... muitoooo baixinha... para além de ter contida nela inúmeros sonhos, desejos, lágrimas... que só ela, e mais ninguém, conhecem). O livro de poesia que estou a ler, um MP3... musiquinha... para aconchegar o corpo mas não só. E no entanto ainda aqui estou. É que escrever também tem esse efeito em mim.
Por hoje chega, no entanto. Anda dura a vida pelo serviço... muitas histórias tristes, muitas famílias em sofrimento, muitas pessoas com dor (de vários tipos - de solidão, física, da alma). O Natal, tempo de amor e alegria, ali por vezes parece pouco. Mas há sempre aqueles pequenos momentos que me lembram, quando estou mais esquecida, do porquê de ter escolhido fazer o que faço e acompanhar estas pessoas num percurso chamado "doença" pelos vários trilhos que podem seguir durante o mesmo (recuperação, voltar a casa, esperança... e também, sim, o tal sofrimento e a morte).
(espera-me também, daqui a uns dias, o Porto e o aconchego daquele "estar em família" que sabe tão bem... tenho saudades da nossa árvore, do amontoado de prendas, da alegria dos meus primos ao ouvir o riso do Pai Natal, a jantarada e a almoçarada... de ser criança, de ser "a prima mais velha". De dormir em colchonetes e dormir melhor que nunca... com a minha prima a acordar ás 7h da manhã, mesmo de férias... De ser a neta-rainha... e as outras serem só netas-princesas... :) Do colo da minha avó, mesmo que já não seja físico. Dos miminhos que o meu tio me faz, que a minha tia também... GOSTO-VOS.)

Lembrando o Dr. Vítor Cláudio e aquela maravilhosa formação...
eu não me vou cansar nunca de procurar o Pai Natal!!!

"amo-te directamente, sem problemas nem orgulho"


No te amo como si fueras rosa de sal, topacio
o flecha de claveles que propagan el fuego:
te amo como se aman ciertas cosas oscuras,

secretamente, entre la sombra y el alma.
Te amo como la planta que no florece y lleva
dentro de sí, escondida, la luz de aquellas flores,
y gracias a tu amor vive oscuro en mi cuerpo
el apretado aroma que ascendió de la tierra.
Te amo sin saber cómo, ni cuándo, ni de dónde,
te amo directamente sin problemas ni orgullo:
así te amo porque no sé amar de otra manera,
sino así de este modo en que no soy ni eres,
tan cerca que tu mano sobre mi pecho es mía,
tan cerca que se cierran tus ojos con mi sueño.

Soneto XVII - Cien sonetos de amor
Pablo Neruda

(Gostava de ouvir algo assim, de dizer algo assim, de sentir algo assim. É por isso que ao despertar este desejo em alguém, simples palavras se tornam tão importantes. Saber expressar-se assim... merece todos os elogios.)

Canciones desesperadas?...

Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Escribir, por ejemplo: "La noche esta estrellada,
y tiritan, azules, los astros, a lo lejos".
El viento de la noche gira en el cielo y canta.
Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Yo la quise, y a veces ella también me quiso.
En las noches como ésta la tuve entre mis brazos.
La besé tantas veces bajo el cielo infinito.
Ella me quiso, a veces yo también la quería.
Cómo no haber amado sus grandes ojos fijos.
Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Pensar que no la tengo. Sentir que la he perdido.
Oír la noche inmensa, más inmensa sin ella.
Y el verso cae al alma como al pasto el rocío.
Qué importa que mi amor no pudiera guardarla.
La noche está estrellada y ella no está conmigo.
Eso es todo. A lo lejos alguien canta. A lo lejos.
Mi alma no se contenta con haberla perdido.
Como para acercarla mi mirada la busca.
Mi corazón la busca, y ella no está conmigo.
La misma noche que hace blanquear los mismos árboles.
Nosotros, los de entonces, ya no somos los mismos.
Ya no la quiero, es cierto, pero cuánto la quise.
Mi voz buscaba el viento para tocar su oído.
De otro. Será de otro. Como antes de mis besos.
Su voz, su cuerpo claro. Sus ojos infinitos.
Ya no la quiero, es cierto, pero tal vez la quiero.
Es tan corto el amor, y es tan largo el olvido.
Porque en noches como esta la tuve entre mis brazos,
mi alma no se contenta con haberla perdido.
Aunque éste sea el último dolor que ella me causa,
y éstos sean los últimos versos que yo le escribo.

20º poema - Veinte poemas de amor y una canción desesperada
Pablo Neruda

"(...) quero fazer contigo, o que a Primavera faz com as cerejas."

"(...) e me inclino à tua boca para beijar a terra."

"(...) Eu sou o que te espera na estrelada noite,
sobre as praias áureas, sobre as douradas eras (...)"

Palavras que me surpreendem. Pablo Neruda lembra-me... Espanha, sentires, dias que passaram, dias de hoje... onde tento viver a 110%. Gosto de como transborda sentimentos num poema ou em pequenas partes dele. De como palavras suaves penetram a alma e me fazem sorrir. Ele fala de coisas simples, de forma simples. E ao mesmo tempo, poucos são os que se expressam assim.

(Obrigada Espírito, pela prenda... por saberes... por me conheceres e saberes que ia gostar.)

Friday, December 14, 2007

Afectos que cada um de nós tece.

Um dia que começou às 6h da manhã... e se foi fazendo.
Aquela formação e o seu último dia, com muita pena minha. Perceber que cuidar do outro implica primeiro sermos capazes de cuidarmos de nós. Se não estamos bem nunca poderemos conseguir que os outros fiquem um pouco melhor. (e sim, implicou uma exposição, um mostrar de mim que por vezes não é fácil, mas isso faz-nos bem à alma também. Sei que custando-te, também irias gostar J.A.).
O filme... Hotel Ruanda. A crueza e dureza do que é real e palpável e não queremos ver. Fechamos os olhos porque se torna mais fácil.
"Eles não querem saber de vocês, destas imagens... vão olhar para elas e dizer "ai, que horror" e continuarão a almoçar."
Perceber que não quero sentir "uma tal vergonha". E o aviso feito - nós que cuidamos, pensemos este filme como Darfur 2007.
Depois o lanche, numa rua calma da nossa Lisboa antiga, calcorreada por tantas outras pessoas. Hoje por nós. Um cafezinho aconchegante e uma longa conversa. Apreciei (e acrescento... muito!) Obrigada pelas horinhas de devaneios e quotidianos demasiado interessantes para serem calados pela rotina.
Chego a casa cansada, janto e adormeço no sofá.... acordo de repente e penso que me tenho de ir deitar... mas antes um saltinho para ver as novidades on-line...
O dia termina e sinto-me bem. Apenas porque sim.
"O segredo da felicidade está na gestão dos afectos que cada um de nós tece. (...) A afectividade originária é o fio sutural da dor, da mais simples sensação de mal estar ao desespero que necrosa a alma" ( Martins e Teixeira - Tecidos e Afectos em Fios Quatro-Zero)
- a ti Simba, passo a mensagem que já li o livro e não permiti que ficasse preso a mim. Passei-o. Obrigada amigo, pelos pequenos gestos. Sempre lá, mesmo não te tendo por perto tantas vezes como gostaria.

Thursday, December 13, 2007

CHOVEU!... e eu fiquei aconchegada a sentir as suas gotas percorrerem o meu corpo.

Porquê a esta hora? Porque não ir para a cama e contar amanhã ou depois? Uma energia brota cá dentro e não me permite. Tenho de partilhar. Tenho de expressar a minha imensa admiração... afinal, é tão bom não perder a capacidade de nos espantarmos, de imaginarmos...
Cabo Verde - Contos em Viagem, uma peça do Teatro Meridional, que fui hoje ver. Não sabia o que esperar mas mesmo que soubesse nunca teria tido a real noção.
Um cenário simples e tão cheio ao mesmo tempo. Uma mulher, várias, até homem e criança. De uma força, uma vida, uma capacidade imensa de ser outro alguém. Estes "alguéns" de que se fala, gentes de Cabo Verde, com os seus sons, as suas músicas. Ele, que nos dá a conhecer todos eles. Sim, apenas eles dois em palco... e tanta gente, um povo. Não consigo conter as lágrimas ao longo daquele desenrolar de histórias tão docemente unidas que parecem apenas uma. Os cheiros que não estão lá, mas o meu olfacto sente, sim. A cor daquela terra que eu vejo. A projecção de uma voz, vários tons. Ser transportada sem mais numa viagem, por um país, vários livros, uma grande aventura. Estórias de hoje e de ontem, do amanhã de lá, quando o sol nascer. A garra, visível no olhar e nas veias engurgitadas deles os dois. Como é possível ser tanto, encima de um palco... Textos cujas palavras fluem singelas. Músicas entoadas e dançadas com aquele rodopiar... Absorvo sem conseguir dizer uma palavra, uma que seja. Deixo aflorar emoções e sentir tudo. Nem tudo me dá assim tanto prazer...
Parabéns a quem põe em palavras tanta coisa. A quem põe em gestos várias vidas e uma cultura. A quem cria sons que nos transportam. A quem monta cenários que parecem reais.
Uma peça que me encheu. Subscrevo as palavras da Ritinha... "sinto-me quentinha por dentro". Saímos reconfortadas, sonhadoras.

"(...) Na travessia dessa estrada, encontrámos duas cores opostas, o preto e o branco; mas na lonjura que as separa, ou que as liga, encontrámos todas as cores possíveis que existem nos olhos, na pele e na terra."
(José Luís Peixoto)

Sunday, December 9, 2007

Sentir saudades de hoje, amanhã quando acordar.

Uma incursão por um blog que me é conhecido e aquela música da Cesária Évora fizeram-me pensar a palavra saudade. A palavra e tudo o que está por trás dela.
Sentir saudade é de certa forma sofrer. Sofrer a ausência de algo ou alguém que nos marcou ou nos marca, mas que não está mesmo ao nosso lado. É estar rodeada de muita coisa mas sentir a falta de apenas uma. É lembrar os momentos que não voltarão porque nenhum momento se repete. É esboçar um sorriso parvo num momento em que o mesmo não é esperado porque de repente temos um formigueiro a percorrer-nos o corpo ao recordar. É saber que não voltaríamos atrás, com medo de estragar o que foi, e foi tão bom, que consegue deixar-nos saudades. É pensar alguém que não pode estar tão perto quanto gostávamos e senti-la porque não há distâncias que separem um pensamento.
A minha vida foi marcada por muitas mudanças. De local de residência, de escolas, de grupos... daí saber bem o que é a saudade. Mas perceber também como ela tem algo de muito bom. Se existe, é porque aquilo que nos leva a senti-la foi importante.
Tenho saudades dos meus tempos de infância...
De Barcelos, onde corria no meio do trigo até estar completamente arranhada, rindo às gargalhadas, na companhia dos meus primos. Dos intermináveis banhos no tanque. Das refeições feitas naquela cozinha de pedra e madeira.
De Braga, onde tomava longos banhos num rio de água suave... tão suave que tinha a sensação de ter passado todo o meu corpo por amaciador. Da água que bebia directamente da fonte, gelada, mas deliciosa. De ter de ir para o rio de sandálias, por não conseguir andar de pé encima das pedras.
De Aveiro, onde passeava tantas vezes na Costa Nova e comia aquelas bolachas americanas que eram quase maiores que eu. Do meu infantário e do forte de madeira que tínhamos no pátio. De brincar aos supermercados, às "casas", aos "médicos"... de vestir aqueles enormes vestidos do baú, com os que nos tornávamos "pessoas grandes". De andar de triciclo, o meu triciclo de banco vermelho, naquele pátio ao pé de casa, com o meu pai sempre bem perto de mim.
De Avanca e das eternas brincadeiras no jardim com os meus amigos e vizinhos. As aulas que dava a um agrupamento de bonecos e os exercícios que lhes corregia. O quadro e o giz que usava para lhes ensinar o que andava a aprender na escola. O Bollycao que a minha empregada me dava no regresso da escola (e que a minha mãe não sabia!). As ameixas da árvore da minha amiga, que comíamos com prazer. As vezes que saltava o muro e ia para a igreja, sozinha, não sei bem fazer o quê... mas gostava do silêncio. As vezes que saltava o muro e ia ter com os meus amigos que saiam da catequese. A vez que fui para trás dos anexos e experimentei um cigarro e quase que ia morrendo intoxicada.
Do Porto, na infância, na adolescência, hoje e sempre. A maior parte da minha família está lá e de lá tenho sempre saudades. Dos dias de são João, passados a lançar balões e foguetes... Dos Natais, com uma mesa para 30 e tal pessoas, onde nos rimos imensamente. Da árvore rodeada de prendas (e passar do ser uma menina que acreditava no pai natal a ser uma menina que gosta que os primos mais novos continuem a acreditar). Dos momentos com o meu avô Ventura, há muito tempo atrás, e dos Sugus que ele me comprava quando íamos passear à Foz (saudades também dele...).
E a Galiza... mi Galicia del corazón. Morriña (uma espécie de saudade em galego). Saudades da simplicidade da vida lá. De Padrón e das ruelas onde passeava tantas vezes. Do mercado, cheio de peixe, fruta e legumes para vender. Da feira onde comprava roupa e os famosos "pimientos de Padrón". Da minha escola, Rosalía de Castro. Do passeio del Espolón. Das aulas privadas de espanhol, onde aprendi espanhol em 2 meses, a brincar e a cantar. Daquela minha casa, a melhor de sempre, com espaço para tudo e um jardim onde brincava sem parar. Daquele campo de ténis onde percebi que jogar com o meu pai e irmão só se for como apanha-bolas. Das árvores de onde tirávamos as maçãs para que a minha mãe fizesse a sua tarte de maçã. Dos jogos de apanhada, à noite, com os meus primos, onde um deles ficou entalado no meio de uma cama articulada. Dos intermináveis jogos de futebol com o meu tio. Das conversas com os meus pais e irmão à mesa, embaraçosas para os meus pais provavelmente, mas que eles mantinham sempre e onde resolviam as nossas dúvidas sobre "os meninos e as meninas" e as diferenças entre ambos.
Tanta coisa e muito mais... só da infância... para não falar da adolescência e dos dias de ontem... tudo trazendo tanta saudade mas também a certeza de que não tenho vivido a vida como se de um Outono se tratasse.


Quero sentir saudades de hoje, amanhã quando acordar, como sinto hoje do dia de ontem.
A saudade é a minha acumulação de momentos bons.

Monday, December 3, 2007

A beleza de tudo.

A leveza de um sopro de vento na folhagem de uma árvore. O bater das asas dos pássaros que, assustados, a abandonam (mas logo regressam... perdoam-lhe o susto e aninham-se de novo no meio dela). Os raios de sol atravessando os ramos, com aquele cintilar do orvalho da manhã. O verde, os vários tons de verde. O castanho e também os seus vários tons. Tem fruta. Não sei qual, imaginem vocês. A robustez de uma vida secular. As fortes raízes agarrando a terra (porque não há outra). Tão grandes que as vemos, no chão, rompendo a terra em rachas imensas. A sombra, num raio o triplo do tamanho da árvore. O livro que se lê debaixo dela (e encostado a ela). Os segredos que se confessam. As trocas que se guardam no silêncio dela (porque ela não conta os segredos a ninguém... e durante séculos já guardou muitos). A chuva caindo sobre ela, pingo a pingo. Aquele cheiro de folha e terra molhada. A tentativa de abraçar o seu tronco (mas não ter um abraço tão grande como o dela).
Toda a beleza de apenas uma árvore. Se pensarmos em tudo o resto que nos rodeia... como podemos não sorrir? A beleza não está no que vemos, mas na capacidade que temos para o ver com cuidado...