Thursday, August 23, 2007

O meu coração batia a mil...

(Este outro porque representa os inícios, os medos e anseios, os receios que se desvanecem com o tempo e alguma experiência... porque é bom lembrá-los, e reconhecer que alguns permanecem... porque com mais ou menos experiência, continuamos a ser pessoas que são enfermeiros... mais nada. 3 Outubro 2006)

A minha primeira manhã/tarde, depois de uma troca pedida por um colega, à qual acedi porque temos de ser "uns para os outros".
A manhã tinha-se passado bem, com muito trabalho mas sem grande stress... e chegava a tarde, apenas com mais uma colega. Tudo nos aconteceu. Tivemos de puncionar imensos doentes tanto para colocação de CVP como para colheita de hemoculturas... eles, alheios ao nosso cansaço e ansiedade, lá esticavam o braço, gracejavam palavras entrecortadas pelo receio de sentir uma agulha a penetrar-lhes a pele e enrugavam a face ao sentir a dor que lhes provocávamos, mas que era necessária. O sr. do hospital de dia, a mão com um seroma enorme... "está tudo bem?" "dói-me um pouco a mão". Parar a transfusão de sangue de imediato, e recomeçar noutro acesso. Tentar melhorar aquele inchaço e hematoma... o sr. que chora apenas porque "fui muito boa para ele, fiz-lhe muito bem". Emudeço. Apetece-me abraçá-lo e dar-lhe um beijo. Dou-lhe apenas a mão e digo "não precisa de agradecer, então? Estamos aqui para isto".
Entretanto, as tensões estavam altas, os anti-hipertensores saltavam das gavetas da medicação para a boca dos doentes... a febre espreitava ao longe e bem perto, e também os anti-piréticos faziam a mesma viagem.
Então, umas veias resistentes às nossas investidas, teimavam em fugir da agulha que as procurava... e a decisão "é necessário colocar um CVC". No meio do caos, parecia então o pesadelo. E as horas a passarem... Eu, na sala, com o doente, a médica, o material... sem saber o que fazer. A médica que compreende e que me diz, passo-a-passo, o que fazer. O nervoso miudinho falava por vezes mais alto e algum material tive de ir buscar em duplicado, porque contaminei, sem querer. As palavras "não se preocupe, temos tempo, ninguém nasce ensinado. O que importa é que as coisas fiquem bem feitas". A tranquilidade que necessitava...
Acabou. Então sai cá fora, e de imediato ouço a minha colega comunicar à médica, "o sr. da cama x faleceu". Ele? Tão indefeso, magro, carcomido pela vida e por ele mesmo. Acompanhado e tão sozinho. O rosto indiferente, estático, gelado. O corpo, leve como uma pena, inerte. Cuidamos dele e fechamo-lo naquele saco tão impessoal... como haveria de ser pessoal se é apenas e só um saco? A imagem... a etiqueta no dedo do pé, como nos filmes, naquele momento então... realidade. O sr. auxiliar do hospital (não do serviço) que vem buscar o corpo, mas que mete apenas um saco na maca, como se não soubesse, não se lembrasse que estava também ali uma pessoa. O saco, ele levou o saco. E nós. Nós comunicamos a morte de um familiar, de um filho, de um primo, de um neto... de uma pessoa.
Deitamos os doentes, aconchegando-os o mais possível, num ambiente que não é o deles.
E quando conseguimos por fim iniciar o ritual do "escrever registos" lembrei que tinha posto o termómetro ao senhor que tinha entrado (um dos dois que deram entrada connosco nessa tarde). Fui, e no quarto, a seu lado, estava o sr. A., a quem antes tinha sido colocado o CVC. Apresentava agitação psicomotora, com discurso incoerente (como viria a referir nos registos escritos de acordo com o meu "eu" enfermeira). O meu "eu" pessoa, diria que o senhor estava aflito... dizia que não queria a máscara (que lhe dava o oxigénio essencial para ele), que queria ir a um qualquer lugar que não especificava, que queria sair... o olhar, vagueava entre o olhar para mim e o olhar para outro local, que não aquele onde se encontrava. Senti que algo ali não estava bem. Não era uma agitação normal de um doente confuso, até porque momentos antes o senhor estava bem, perfeitamente orientado, estava "aqui", e não noutro sítio qualquer. Chamei a minha colega "B., é melhor vires. O sr. da cama x está agitado, não estou a perceber muito bem." Quando as duas tentámos falar melhor com ele, a minha colega disse "é melhor chamares a médica de urgência". Entretanto, os colegas que nos iam render à noite já tinham também chegado. Sai do quarto, procurando o número para o qual iria ligar. A minha colega saiu do quarto, pálida, e gritou "rápido, ele está a parar, a sério". Gelei. Gritei para o G., "liga tu, que eu ainda não sei bem onde está o número" e corri para o carro de reanimação. Com a ajuda de I., lá o levamos para o quarto. Coloquei a placa dura por baixo do senhor. O meu coração batia a mil, o dele estava a desistir de bater. Começaram as compressões, e eu iniciei a ventilação com Ambu. As médicas chegaram e entre medicação, manobras de reanimação, cortinas corridas e entubação OT, olhei o cenário á minha volta, pensei que não estávamos ali a fazer nada. Que nada daquilo fazia sentido. Mas ele não tinha indicação para não reanimar. E prosseguiu-se. Assim tinha de ser.
Tinha 95 anos, nunca tinha ido ao médico, nunca tinha estado doente.
Morreu.
O coração dele aguentou toda uma vida, mas não suportou um momento.
O meu coração batia a mil...

Quando a linha não é plana...

(Quis recuperar este e outro texto, que irei pôr no post seguinte, de um outro blog, onde escrevi há uns tempos - www.enfermeirosparasempre.blogspot.com... este porque momentos assim nos marcam e não devemos esquecê-los, por muito duros que tenham sido - 21 Setembro 2006)

Hoje, num telefonema sobre algo totalmente diferente, ouvi o relato de uma história que me fez perguntar, lembrando um anterior post aqui escrito... e quando a linha não é plana mas sim uma linha vertical em direcção ao vazio, numa fuga desenfreada de algo que não entendemos mas que ele sente tão forte, tão presente, tão intenso?...
Ele, um jovem que despertava em mim a vontade de estar, de ajudá-lo. A vida não foi fácil com ele e ele não foi fácil com a vida. Ganhou tantas batalhas, mas ao perder as forças perante uma batalha apenas, tudo desmoronou e optou por um caminho que não teve retorno.
Não queria estar na vossa pele hoje, assistindo a tudo. Não queria ter de rever essa imagem na minha cabeça vezes sem conta. Não queria sentir a sensação de impotência que devem ter sentindo.
Queria, como vocês, poder ter feito mais por ele.
Mas fizemos tudo o que pudemos...
"Tive várias conversas com ele e ele teve uma vida trágica... A morte não foi diferente..."
Duras palavras de quem nunca pensou confrontar-se tão cedo com algo assim. Eu, à distância de uma folga, também o senti. Pensamos estar preparados para tudo, e percebemos a nossa pequena dimensão quando tudo acontece à nossa frente. E lembramos-te hoje e talvez sempre, porque tudo aconteceu assim. Não quero. Quero lembrar-te como alguém que não teve uma vida fácil e que tentámos ajudar, como todos os outros doentes que cuidamos, mas por quem sentia um carinho especial. O teu bilhete de saída para o mundo, perdeste-o, entre sedativos e conversas incoerentes. Entretanto, o mundo perdeu-te a ti também.
"Batem as portas, em tons de suicídio, como se fossem um corpo a cair do nono andar..."
(Daniel Sampaio, Tudo o que temos cá dentro)

Tuesday, August 21, 2007

Palavras para reflectir...

Vivemos numa sociedade que apenas pensa no hoje. Se pensarmos e lutarmos pelo nosso amanhã, esse dia será em grande. E o seguinte, será sempre melhor que o anterior.

Temos de aprender a gatinhar antes de andar...

(agora pensem que isto foi dito por pessoas que, um dia, se tentaram suicidar)

Batem as portas, em tons de suicídio,
como se fossem um corpo a cair do nono andar...

... Is something wrong, she said
Well of course there is
You're still alive, she said
Oh, and do I deserve to be
Is that the question
And if so...if so...who answers...who answers...
I, oh, I'm still alive
Hey I, oh, I'm still alive
Hey I, but, I'm still alive
Yeah I, ooh, I'm still alive...

Feels so good to be alive...
I want to feel all the sadness and all the joy...
Live, as we all should...
Intensidade, cor, luz...
Smiling, crying, sharing...
Today... Hoje... Tomorrow... Amanhã...
Five years from now...
Na minha velhice...
All the summers, all the winters...
Todos os outonos e primaveras...
Live them fully...
Fear nothing...
Try everything...
Dancing in the moonlight...
Knowing we're all stars, in the greatest sky of all...

Oh yeah... feels so good to be alive...

Viver.

Sunday, August 19, 2007

Vejo(-te) (um dia...)

Vejo a rua pela janela, com as árvores ao vento e as nuvens que parecem mexer-se também com ele...
Vejo o ecrã do computador enquanto escrevo este texto... e as letras, aparecendo uma atrás da outra, devagarinho ou rápido, consoante a rapidez com que eu consiga "teclar"...
Vejo a televisão a anunciar os programas das próximas horas...
Vejo a sombra das cortinas reflectidas no chão da sala... sombra que se move...


(Oiço a porta a bater, lá ao fundo, porque as janelas estão todas abertas e a aragem corre, livre, pela casa)...


Vejo as minhas mãos sobre o teclado...
Vejo a planta ao canto, verde, viva...
Vejo os quadros de um outrora familiar lugar, onde vivi... aquele convento, aquelas ruas, aquele rio...
Vejo aquela mala, aquele chapéu, aquele guarda-chuva... tudo numa pequena escultura, que nos representa, viajantes... gentes sem lugar, de todos os lugares, de lugar nenhum...


(e vejo, não consigo ler, mas vejo, porque sei que está lá... a palavra morrinã... e sei o que significa...)


Mas olho, e não te vejo...
"Aquela" pessoa a meu lado, para ver tudo isto comigo.
Um dia... um dia sim. E depois essa pessoa dirá se vê o mesmo que eu.

Eu vejo-te... (um dia)



Wednesday, August 15, 2007

O meu dia de hoje.

Hoje serei rápida.
Depois de um dia calmo e sereno, na companhia da minha Pipinha, naquela praia magnífica (num dia em que ninguém diria que estaria bom para fazer praia)... naquele bar maravilhoso, num moinho, com uma vista fantástica... e depois de um peixinho assado que caiu que nem "gingas"... (e que levo também para o almoço porque na família Domingues me tratam como uma filha! :p Obrigada...)... cheguei a casa, tomei um banho, besuntei-me de creme e estou pronta para ir dormir, de alma tranquila e cheia.
Dias assim... rejuvenescem-nos.

All simple things...

Saturday, August 11, 2007

GULBENKIANNNNNNNNN...

"Ok... passou só um ano... mas é bom sentir que temos tema de conversa, o pessoal dá abraços e beijos... mesmo com aqueles a quem vemos de 6 em 6 meses..."


É estranho, realmente é estranho lembrar que passou já um ano desde que terminámos o curso. A palavra "enfermeiros" ecoou por uma Aula Magna repleta de pessoas felizes por nos verem já formados... ecoou na sala onde apresentámos a monografia e onde, ao dizer a última palavra constante na nossa apresentação, terminámos mais um, "apenas" mais um ciclo da nossa vida... ecoou na sala onde dançámos, comemos e bebemos, comemorando o fim desta etapa, na nossa Gala, todos bem vestidos... porque sim... ecoou no avião que nos trouxe de volta naquela maravilhosa viagem de finalistas que nos levou a conhecer terras brasileiras... ecoou no momento em que ouvimos alguém nos dizer "começa no dia x... traga todos os documentos e a farda".
A vocês, srs enfermeiros, formados pela ESECGLx... naquele que foi o seu 4º CLE... dizer que vos sinto hoje tão perto como outrora quando nos encontrávamos diariamente nos corredores da nossa escola... uns mais, com maior frequência, outros menos, como é normal acontecer... todos são pessoas que sinto como integrantes da minha vida passada, presente e futura. Em viagens, jantares, cafés ou dias de praia... vão estando sempre comigo. Com vocês nunca estou sozinha.
Como diria a Anabee... deixemo-nos de paneleirices... mas não posso deixar de escrever mais uma coisa... (mas têm que imaginar o grito entoado pelas nossas vozes, digamos que, não muito bonitas...)... Aqui vai... 4º CLEEEEEEEEEEEEE lol (e atrás ouve-se o coro...) OLÉ OLÉEEEEE

Já chega... :)
E o orgulhoso grito... esse sim, talvez entoado pelas últimas vezes, com alguma tristeza minha... ESCOLA SUPERIOR DE ENFERMAGEM CALOUSTE GULBENKIAN DE LISBOA.

Um apontamento... revisitar o ritual da Benção, neste caso a do 5º CLE, foi estranho... mas bom... e estender a minha capa a quem não tendo terminado connosco, terminou agora... foi uma honra... :) Parabéns a mais uma leva de enfermeiros que por aí anda, gulbenkianos claro. Toda a sorte do mundo. Não está fácil... mas tudo se consegue! :)

Sunday, August 5, 2007

Reencontros.












Reencontrar... voltar a encontrar.

Como se explica a sensação de um reencontro? De voltar a estar com alguém que não víamos há mais ou menos tempo?

Tenho muitos reencontros. Temos todos, acho eu. Reencontramos os colegas de trabalho, sempre que vamos trabalhar, porque não existem dois dias iguais.

Reencontramos os amigos de sempre e de todos os dias, todos os dias. Porque há sempre algo de novo para contar.

Reencontramos a família que não está sempre connosco e a família que está sempre ao nosso lado mas de quem nos separamos por umas horas.

Mas há reencontros e reencontros. Há aqueles de um periodo de tempo mais prolongado e que por isso trazem consigo a dúvida de se "estará tudo na mesma". O que vemos, é que nas pessoas que permanecem sempre, que estão sempre lá, mesmo não sendo preciso falar todos os dias com elas, "parece que foi ontem que nos vimos pela última vez"... independentemente de que tenham passados anos.

A questão é quando o reencontro nos dá um nó na barriga. Quando o tempo passou demasiado rápido mas mesmo assim passaram dois anos. Quando as lembranças e vivências são muito intensas. Quando aquela pessoa foi e será sempre alguém muito especial nas nossas vidas, por tantos e tantos motivos.

Quando a vemos... agimos de forma estranha. Afinal, conhecemo-nos tão bem, mas passaram dois anos. Afinal partilhámos tanta coisa mas vivemos tantas outras coisas depois disso. Os cabelos tão diferentes, mais gordos, mais magros... com receio. Receio do que desconhecemos.

No final, apenas a vontade de não deixar passar tanto tempo para outro reencontro. Importou perceber que não nos perdemos, que nada foi em vão. Ter saudade, por momentos, é certo, de um passado envolto de tanta e tanta magia... pelo local, pela aventura, pela intensidade.

Os reencontros, este reencontro, foi bom. Na partilha de um pôr-do-sol naquele meu recanto que é o Guincho, de um jantar, de um passeio naqueles jardins envoltos em monumentos lindíssimos e orgulhosamente portugueses... naquele local de onde outros partiram também em aventuras e descobertas que nos tornaram grandes lá fora... percebi que tenho mais uma pessoa, entre tantas pessoas especiais, que hão-de ficar na minha vida. E é bom.

Os reencontros que nos mostram isso, são reencontros bons. Ou melhor, são os verdadeiros reencontros. Os outros não passam de momentos em que duas pessoas se cruzam. Ponto final.