Hoje tive um dia interessante no serviço. Uma situação em particular fez-me pensar sobre o nosso papel ali, como profissionais de saúde, e sobre o papel do doente.
Ele, o sr. P., entrou para o serviço na noite de 6ª para sábado, tendo sido eu quem o recebi e fiz a sua admissão e socialização ao serviço. Um homem que se percebia de imediato ter um grau académico elevado e pertencer à classe alta do nosso país (uma minoria na população que recebemos por lá). Tinha um amigo médico no HSJ, que o obrigou a recorrer às Urgências depois de saber que há 7 dias que o senhor perdia sangue em grande quantidade nas fezes, encontrava-se muito cansado e pálido. Foi convencido que não ficava internado, mas uma Hemoglobina de 5.7 mg/dl, a necessidade de ser transfundido e uma Endoscopia que não mostrou nenhuma alteração, obrigaram-no a ser transferido para o nosso serviço para se estudar melhorar a sua situação e perceber onde estava a causa desta perda marcada de sangue.
À entrada percebi de imediato que a sua ideia não era ficar muito tempo por lá até porque a intenção nunca foi sequer ficar um dia. No entanto, mostrava-se um doente calmo, bem-disposto e extremamente colaborante em todos os cuidados que lhe eram prestados.
Uma vez que li a sua nota do Serv. de Urgência percebi que, além das alterações analíticas a nível do hemograma, existia uma pequena nota que, habitualmente, não é muito bom sinal: "apresenta glóbulos brancos atípicos; aconselha-se observação pela Hematologia".
Ontem, já de tarde, o Dr. E. entrou ao serviço e já estava a par da situação do sr., pois o tal médico amigo do HSJ tinha falado com ele e pedido que acompanhasse o caso. O Dr. E. diz então ao doente que hoje gostaria de lhe fazer uma Biópsia Óssea e um Mielograma para estudar melhor a sua situação. O doente recusou. Disse que não iria fazer esse exame hoje e que gostaria de ter alta com alguma brevidade, começando a ficar um pouco ansioso pelo que se teve de pedir novamente a presença do médico, que tentou dar um "calmante" ao doente, que mais uma vez recusou.
Hoje, quando cheguei ao serviço, fui alertada para este facto. No meu interior, pensando um pouco no senhor e naquilo que tinha conhecido dele, e pensando no Dr. E., e naquilo que conheço dele, percebi que o mais provável é que o doente tivesse alta hoje mesmo.
Durante a passagem de turno surge um pequeno debate... quem teria razão? Porque recusava o doente o estudo da sua situação? Terá o médico abordado o doente da melhor forma? Será que o doente, visto ter sido operado anteriormente em Inglaterra e fazer seguimento regular nos USA, "está com a mania" que isto aqui não presta e ninguém percebe nada do que faz? Será que o doente tem alguma razão ou é meio histérico?
A minha questão, depois de ter visto o doente sair com alta contra parecer clínico, após o médico ter tentado uma nova abordagem e ter colhido sangue para análises, pelo menos, para que o doente pudesse ter algo para mostrar ao médico que o irá seguir posteriormente, é...
Estaremos tão habituados a doentes que, por um menor grau de educação, não questionam o seu tratamento, que quando um o faz pensamos de imediato que está a questionar, não aquilo que é um total e incontornável direito seu, mas a nossa capacidade e o nosso mérito enquanto profissionais de saúde?
Reagem todos os doentes da mesma forma a uma "possibilidade" de diagnóstico menos positiva?
Será que todos os doentes têm que querer ser seguidos, que querer tratamento, que querer passar por tudo isso? (ou somos nós que achamos que cuidar de alguém implica sempre tentar tratá-lo e que não sabemos lidar com a impotência de "deixar o destino conduzir o futuro dessa pessoa"?)
O doente... ou melhor, o senhor P., saiu cerca das 12h do serviço, para casa, na companhia da sua filha. Numa pequena conversa que tive com ele antes da alta, percebi que tinha gostado do nosso trabalho e do que fizemos por ele. Tentei que entendesse que seria melhor fazer seguimento, apenas porque estas suspeitas não se levantam sem haver pequenos sinais de alerta. Disse que o faria, mas fora dali, podendo dormir todos os dias na sua casa, na companhia da sua família. Terminou dizendo: "mas eu não tenho nada". Negação ou encarar o futuro dia a dia, sem pressas, sem medos, sem "pôr a carroça à frente dos bóis"? Não interessa. Importa sim que foi a sua decisão e que deveremos respeitá-la.
Quem somos nós para decidir por alguém que o consegue fazer sozinho?
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