Sunday, October 28, 2007

É o confronto com o outrem, que nós somos.

Estou aqui, sentada no "office" do corredor do meu serviço. São quase 4 da manhã. Na porta à minha frente o quarto do sr. A. (e não só). Fala, fala, fala... não percebo sobre o quê. Está a dormir, mas tal como nos momentos em que está acordado, fala. Isso e o ressonar de outros tantos doentes, em conjunto com o meu teclar, constituem os únicos sons audíveis neste momento neste espaço.
Fomos à pouco "dar a volta", expressão usada na gíria de Enfermagem para expressarmos o acto de ver se tudo está bem com todos, mudar a posição daqueles que sozinhos não o conseguem fazer... dar o aconchego nocturno para que possam continuar a ter um sono descansado. De lanterna na mão, lá andamos (às vezes questiono-me como reagiria se acordasse e visse uma sombra a andar no meu quarto de lanterna na mão... não ia ser bonito.). Nesse bocadinho, a tal "volta", vemos um pouco de tudo. Olhos imensamente abertos que nos descobrem no meio da escuridão, daquelas pessoas que já em casa dormiam pouco e aqui, em ambiente estranho, não dormem mesmo nada de noite. Aqueles outros olhos bem fechados, de quem dorme profundamente. Aqueles que parecem dormir, tal como o sr. J. mas que, sem abrir os olhos, lá conseguem dizer "dê-me algo para comer" (o sr. J. tem um "grave" problema... a fome constante!). O sr. que não respira tão bem assim, e que sim, a esta hora, necessita que um tubinho o ajude a tirar tudo cá para fora (que descanso...). Acochegamos, tapamos, envolvemos nas mantas e cobertores. E lá ficam. Preparados para a outra metade da noite. Para daqui a umas 2h30 serem acordados com avaliação de TA, temperatura, comprimidos para tomar... (que péssimo acordar!!!).
Pensando da perspectiva deles... passar uma noite aqui não deve ser nada fácil. Quanto a mim... tirando o transtorno no meu ciclo circadiano (que já não deve existir por aí além) e no meu cerebrozinho já por si só um pouco "frito", fazer noite, quando é calma como a de hoje, permite viver "aqueles tais pequenos momentos" de que um caro leitor falou. Não fosse hoje o sr E., de quem falei no post anterior, me ter dito, quando me dirigi a ele para lhe pedir que me acompanhasse até ao seu quarto para lhe poder ver os parâmetros vitais (e depois de me chegar mais perto dele porque ele não estava a ouvir o que eu lhe dizia), com um sorriso e olhos rasgados, "você tem uns olhos tão bonitos"... :) (recordo que tem uma doença psiquiátrica e que não faz este tipo de comentários com maldade nenhuma).
E gosto, gosto de chegar depois de 3 dias sem cá vir, e dar uma grande "boa noite" aos doentes, com a qual eles se riem... passando logo eu a explicar "é que já não o via há tanto tempo, que isto tem de ser dito com energia!".
Sim, somos enfermeiros que damos muito aos outros mas também recebemos, muito. Ainda mais quando as condições assim o permitem. Quando há tempo para ter tempo. Para estar. Para descobrir algo mais da vida das pessoas que estão ali connosco. Como um professor me disse uma vez "não é ser curiosos, é ser interessados, é mostrar áquela pessoa, que ela tem um valor maior para nós, que o de um simples doente a quem damos comprimidos". E sim, exercemos Enfermagem, para os outros, mas sobretudo, com os outros.
É como ter um espelho,
onde vemos muitos possíveis momentos da nossa vida.
É o confronto com o outrem,
que nós somos.

1 comment:

MÓNICA said...

Não pude deixar de rir,com a história da lanterna a meio da noite! Quando eu fazia noites (há quase 2anos q não faço), também andava de lanterna de enfermaria em enfermaria, para ver se estava tudo bem com eles! numa "saída de vela", chama-me uma doentinha, que me diz:- Andou aí uma alma penada toda a noite com uma luzinha, á procura de alguém para levar com ela, mas a mim, não me apanhou, que eu não deixei!
E convencer a senhora que a dita "alma penada" era eu...?
Foi preciso ir buscar a lanterna, mas mesmo assim, não ficou mt convencida!
bjk