Descansando de 16 horas de trabalho. Passei o dia a dormir depois de dois turnos intensos, não tanto a nível de trabalho, mas sobretudo a nível emocional. Uma tarde e noite que não esperei que acabasse assim...
Já na passagem de turno, aquele ritual que celebra o fim de uma jornada laboral, oito da manhã... A AAM vem-me chamar. "O sr. da cama 21 diz que quer lá uma enfermeira". A cara diz tudo. Vou, achando que o sr está, uma vez mais, apelativo, receoso... apenas isso. Aproximo-me já fatigada, com menos paciência do que seria de esperar de uma enfermeira, com pouca vontade já de ali estar. Continuo a achar que o sr quer apenas atenção. Que não está mal. Apenas sozinho. Sofre de um cancro de pulmão, em fase avançada, sem hipótese de cura. Esteve bem nas horas passadas. Atmosfera húmida de vez em quando, tornara-se naquilo que melhor o fazia sentir. Mas falava, calmo, sem grandes queixas. Agora estou à sua frente e agarra-me o braço. Sinto-me incomodada com aquela invasão do meu espaço, o meu espaço íntimo. Afasto-lhe a mão, talvez não tão delicadamente como devia. Respira ofegantemente, diz que lhe dói tudo... o peito, as costas, os braços. Olho-o. Não como apenas uma pessoa olha para outra pessoa. Olho-o também como enfermeira. Está pálido, muito pálido. Sudorese profusa. Como pessoa, vejo claramente o seu sofrimento. Peço o Dinamap... tento perceber como estão os sinais vitais. O aparelho teima em dar sinal de erro... não consigo avaliar. Aparece apenas, por uma questão de segundos, a Sat O2... 78%. Pisca o sinal de "baixo"... como se eu não o soubesse. Ele não está bem. Eu sei. O meu "eu" enfermeira também. De repente... aquela pergunta que nunca queremos ouvir, porque não temos resposta para ela. "É o meu fim?" Os seus olhos observam-me, ansiando uma resposta que ele, melhor do que eu, sabia. Sentia. Numa atitude cobarde, finjo não ouvir a pergunta. Tento acalmá-lo, fazer com que respira mais pausadamente. Em vão. Repete a pergunta, como se me dissesse que não posso fugir dela. É importante para ele ouvir algo. É importante para mim dizer-lhe algo então. Respondo, não disfarçando o meu receio e incerteza, "não me faça essa pergunta. Sabe que ninguém pode responder a isso". Peço que se acalme, que respire pausadamente, uma vez mais. Sou eu quem o tem de fazer também. A impotência invade-me. Decido ligar ao médico. Peço à AAM que fique um instante com ele. Tenho medo que no meio daquela agitação, ele caia ao chão. Digo ao Dr. E. o que se passa. Oiço do outro lado apenas um "aumente o débito do oxigénio". "Ao meu critério?" - questiono. "Sim, não podemos fazer nada mais. O sr tem um cancro do pulmão, vai morrer, vamos tentar dar-lhe um pouco mais de O2". A resposta corrói. Sei que não vou ter o apoio dele naquele momento. Não pretendo prolongar a vida de quem está por um fio, mas aliviar o sofrimento de quem sente que está a partir, consciente, com falta de ar... Regresso para perto do sr... as forças desaparecem e temos de o ajudar a recostar-se. Coloco-lhe o oxigénio a 12 litros por minuto por máscara de alto débito. Não me fala. Já não reage. Não lhe palpo pulso periférico. Não me parece essencial palpar um pulso central. Respira, vagorosamente, em esforço... em agonia. Geme. Os seus olhos... revelam que algo se passou naquele curto espaço de tempo: anisocória (assimetria das pupilas) marcada. Nunca tinha visto nada assim. Perde o controlo do esfíncter urinário.
Passaram apenas cerca de 20 minutos desde que tudo começou. Está na hora de ir embora. Digo às minhas colegas que o sr já não está cá. E saio, com a colega de turno. Como se não tivesse passado por estes 20 minutos. Sei, pouco depois, por uma mensagem, que o sr faleceu. Não consigo não pensar nele. No seu "desculpe por lhe estar a agarrar o braço" e o meu "não faz mal", dito já depois de ter percebido que aquele toque não era a invasão do meu espaço que inicialmente tinha sentido, mas uma necessidade de alguém que o acompanhasse neste percurso desconhecido, incerto, solitário. E aquela pergunta... a minha resposta vaga...
Princípio, meio e fim...