No sábado lá nos reunimos todos, ou quase todos, aqueles que tínhamos ido a Cuba há umas semanas atrás para trocar fotografias, matar saudades, ver as nossas "figurinhas" filmadas durante estes dias em terras estrangeiras. Como sempre, soube bem. Sentir o aconchego da vossa companhia e da tranquilidade que ela me dá... sentir que somos "tanto" juntos que somos todos "um pouco mais" por isso.
Adiante... no meio de tudo aquilo, eis que surge um documentário na Sic Notícias que há muito ansiava ver. Do mesmo realizador de "Tropa de Elite" e "Cidade de Deus", "Ónibus 174" relata o sequestro de uma série de reféns num autocarro por um jovem, numa cidade brasileira, que no seu momento foi muito noticiado. Nele tenta-se perceber um pouco do passado daquele rapaz, menino de rua, e procuram-se algumas explicações (?) para a razão que o leva a ter uma atitude assim. Surge entre nós uma discussão infindável de se ele tem culpa, se não tem, se a polícia devia ter atacado mais cedo, se não devia, se a justiça popular é compreensível nestes casos ou não. A verdade é que aquela é uma realidade que não é nossa, uma vida que em nada se assemelha à que nós levamos...
Que sei eu sobre viver na rua?
... sobre ver a minha mãe ser esfaqueada à minha frente e morrer nos meus braços?
... sobre roubar para comer?
... sobre roubar para sustentar um vício que me ajuda a levantar-me todos os dias e "sobreviver-lhes", ainda sendo um mau vício?
... sobre não saber ler ou escrever e não ter ninguém disposto a ensinar-me?
... sobre não ter razões para sorrir, pelo menos, uma vez por dia?
... sobre estar num autocarro, horas a fio, com uma arma apontada para mim e as ameaças de que a qualquer momento poderei ser morta?
... sobre estar a ver um homem, imprevisível, dentro de um autocarro, dizendo que vai matar toda a gente?
... sobre ter em mira a cara de alguém e bastar só um pequeníssimo movimento para acabar com a vida dessa pessoa?
... sobre não saber a intenção dele quando sai do autocarro com a refém?
... sobre viver o meu quotidiano com medo e receio?
Não sei nada. Gera-se toda uma discussão sobre algo que tento, mas não consigo perceber. Não sei quem devo julgar e como o devo fazer. Nem sei sequer se tenho esse direito. Não consigo imaginar como foi a vida daquele miúdo e, quando tento, arrepio-me, a lágrima aproxima-se do canto do olho e penso que ele não tem nada que o proteja... NADA. Nem uma memória boa... nem a lembrança sequer de um afecto. Mas também penso no outro lado. No medo que criou, na insegurança que aquelas pessoas sentem, no que é suposto a polícia fazer e que não é tão fácil como podemos achar às vezes que é. Disparar, sabendo que ao fazê-lo matamos alguém... não é apenas uma questão de treino.
Como posso eu tentar sequer perceber?
Gostava que todas as crianças tivessem acesso ao essencial: afectos. A mão que os agarra quando começam a perder-se, o sorriso que os recebe no regresso de algum lugar, o abraço que lhes diz "não chores, não tenhas medo... estou aqui."
O mundo é tão cruel às vezes, que nem isso lhes consegue dar. E depois?... Ficamos envolvidos num ciclo vicioso de ódio que gera medo que gera ódio. Quem se encontra no meio do ciclo... sofre, de uma maneira ou outra, sofre sempre. Quem se encontra fora, como nós, bem tenta compreender... mas será que concluimos algo?