(Este outro porque representa os inícios, os medos e anseios, os receios que se desvanecem com o tempo e alguma experiência... porque é bom lembrá-los, e reconhecer que alguns permanecem... porque com mais ou menos experiência, continuamos a ser pessoas que são enfermeiros... mais nada. 3 Outubro 2006)
A minha primeira manhã/tarde, depois de uma troca pedida por um colega, à qual acedi porque temos de ser "uns para os outros".
A minha primeira manhã/tarde, depois de uma troca pedida por um colega, à qual acedi porque temos de ser "uns para os outros".
A manhã tinha-se passado bem, com muito trabalho mas sem grande stress... e chegava a tarde, apenas com mais uma colega. Tudo nos aconteceu. Tivemos de puncionar imensos doentes tanto para colocação de CVP como para colheita de hemoculturas... eles, alheios ao nosso cansaço e ansiedade, lá esticavam o braço, gracejavam palavras entrecortadas pelo receio de sentir uma agulha a penetrar-lhes a pele e enrugavam a face ao sentir a dor que lhes provocávamos, mas que era necessária. O sr. do hospital de dia, a mão com um seroma enorme... "está tudo bem?" "dói-me um pouco a mão". Parar a transfusão de sangue de imediato, e recomeçar noutro acesso. Tentar melhorar aquele inchaço e hematoma... o sr. que chora apenas porque "fui muito boa para ele, fiz-lhe muito bem". Emudeço. Apetece-me abraçá-lo e dar-lhe um beijo. Dou-lhe apenas a mão e digo "não precisa de agradecer, então? Estamos aqui para isto".
Entretanto, as tensões estavam altas, os anti-hipertensores saltavam das gavetas da medicação para a boca dos doentes... a febre espreitava ao longe e bem perto, e também os anti-piréticos faziam a mesma viagem.
Então, umas veias resistentes às nossas investidas, teimavam em fugir da agulha que as procurava... e a decisão "é necessário colocar um CVC". No meio do caos, parecia então o pesadelo. E as horas a passarem... Eu, na sala, com o doente, a médica, o material... sem saber o que fazer. A médica que compreende e que me diz, passo-a-passo, o que fazer. O nervoso miudinho falava por vezes mais alto e algum material tive de ir buscar em duplicado, porque contaminei, sem querer. As palavras "não se preocupe, temos tempo, ninguém nasce ensinado. O que importa é que as coisas fiquem bem feitas". A tranquilidade que necessitava...
Acabou. Então sai cá fora, e de imediato ouço a minha colega comunicar à médica, "o sr. da cama x faleceu". Ele? Tão indefeso, magro, carcomido pela vida e por ele mesmo. Acompanhado e tão sozinho. O rosto indiferente, estático, gelado. O corpo, leve como uma pena, inerte. Cuidamos dele e fechamo-lo naquele saco tão impessoal... como haveria de ser pessoal se é apenas e só um saco? A imagem... a etiqueta no dedo do pé, como nos filmes, naquele momento então... realidade. O sr. auxiliar do hospital (não do serviço) que vem buscar o corpo, mas que mete apenas um saco na maca, como se não soubesse, não se lembrasse que estava também ali uma pessoa. O saco, ele levou o saco. E nós. Nós comunicamos a morte de um familiar, de um filho, de um primo, de um neto... de uma pessoa.
Deitamos os doentes, aconchegando-os o mais possível, num ambiente que não é o deles.
E quando conseguimos por fim iniciar o ritual do "escrever registos" lembrei que tinha posto o termómetro ao senhor que tinha entrado (um dos dois que deram entrada connosco nessa tarde). Fui, e no quarto, a seu lado, estava o sr. A., a quem antes tinha sido colocado o CVC. Apresentava agitação psicomotora, com discurso incoerente (como viria a referir nos registos escritos de acordo com o meu "eu" enfermeira). O meu "eu" pessoa, diria que o senhor estava aflito... dizia que não queria a máscara (que lhe dava o oxigénio essencial para ele), que queria ir a um qualquer lugar que não especificava, que queria sair... o olhar, vagueava entre o olhar para mim e o olhar para outro local, que não aquele onde se encontrava. Senti que algo ali não estava bem. Não era uma agitação normal de um doente confuso, até porque momentos antes o senhor estava bem, perfeitamente orientado, estava "aqui", e não noutro sítio qualquer. Chamei a minha colega "B., é melhor vires. O sr. da cama x está agitado, não estou a perceber muito bem." Quando as duas tentámos falar melhor com ele, a minha colega disse "é melhor chamares a médica de urgência". Entretanto, os colegas que nos iam render à noite já tinham também chegado. Sai do quarto, procurando o número para o qual iria ligar. A minha colega saiu do quarto, pálida, e gritou "rápido, ele está a parar, a sério". Gelei. Gritei para o G., "liga tu, que eu ainda não sei bem onde está o número" e corri para o carro de reanimação. Com a ajuda de I., lá o levamos para o quarto. Coloquei a placa dura por baixo do senhor. O meu coração batia a mil, o dele estava a desistir de bater. Começaram as compressões, e eu iniciei a ventilação com Ambu. As médicas chegaram e entre medicação, manobras de reanimação, cortinas corridas e entubação OT, olhei o cenário á minha volta, pensei que não estávamos ali a fazer nada. Que nada daquilo fazia sentido. Mas ele não tinha indicação para não reanimar. E prosseguiu-se. Assim tinha de ser.
Tinha 95 anos, nunca tinha ido ao médico, nunca tinha estado doente.
Morreu.
O coração dele aguentou toda uma vida, mas não suportou um momento.
O meu coração batia a mil...