Sunday, March 30, 2008

A alegria de não ver nada mais alto.

"Penso no fogo que arde dentro dos alpinistas, penso nessa raça de humanos que se mexe pelo estímulo mais absurdo que há: não ver nada mais alto. Penso em João Garcia, na sua determinação em viver com qualidade de vida, porque qualidade de vida não é o todo-terreno para o engarrafamento matinal cinco dias por semana, nem poupar no preço daquilo que se come para se gastar naquilo que se mostra. Qualidade de vida não são os quatro apelidos e três nomes próprios do filho varão, nem a lista de espera de dois anos para a creche, nem o T1 de luxo entricheirado no horror paisagístico que caracteriza a periferia portuguesa em geral, a Grande Lisboa em particular. Qualidade de vida não é música que bate na cabeça no sábado à noite, a amena cavaqueira com o copinho de uísque na mão, o livro que não se lê, a decisão que não se toma.
Qualidade de vida é ter um sonho e viver por ele, é fazer como o João Garcia, que é português mas de uma raça antiga que se vai diluindo sem apelo nem antídoto nas compras do hipermercado no domingo à tarde. Que bom foi ter subido a Chacaltaya para espreitar os sonhos dos outros, para saber quanto custam, quantos músculos requerem, quanta energia roubam, quanto oxigénio não dão. Agora já tenho uma ideia, muito por aproximação, da alegria de não ver nada mais alto."
(Gonçalo Cadilhe - Planisfério Pessoal)

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