Tuesday, March 27, 2007

Ignorância...

"- É um HIVzito", disse, enquanto puxava as luvas bem até cima, tapando a pouca pele que tinha exposta naquele braço, num gesto de aviso e chamada de atenção. Gelei, calada. Devia ter dito algo talvez, mas na altura fiquei simplesmente calada. Apeteceu-me perguntar se sabia quantas pessoas já tinhas transportado com "HIVzito" desconhecendo o diagnóstico. Apeteceu-me dizer-lhe que deveria preocupar-se mais com os seus comportamentos de risco e menos com o transporte de um doente para o qual as medidas de protecção devem ser sempre as mesmas, seja quem for que tenha pela frente. Apeteceu-me dizer-lhe que não tinha nada a ver com isso. Mas cingi-me ao silêncio de quem é apanhada de surpresa.
Lembro então aquela outra história, daquele outro senhor, encontrado caído em casa pela vizinha. Após a chegada do INEM e quando questionada sobre o que teria o sr., a vizinha respondeu "o sr. tem SIDA". Parou tudo. O sr. foi deixado sozinho, após afirmações convictas de "ninguém toca no sr.". Foram-se equipar, sim, como grupo de astronautas preparadas para ir em missão espacial. A vizinha, essa, ficou a levantar o sr. Depois disso, lá levaram o sr. para o hospital, não sem antes terem espalhado o diagnóstico do mesmo pelo bairro todo, inclusive à sra. que habitualmente tratava da sua casa e que gritava então "eu sou mãe de filhos, e agora? e agora?". A esta última situação relaciono o termo ignorância, porque ainda posso perceber que uma pessoa que não relacionada com a área de saúde, possa ter uma reacção assim perante a palavra SIDA, mais ainda quando a equipa de saúde presente no local faz o que fez. A isso já lhe chamo outra coisa, BURRICE (já para não falar de falta de ética e da inexistência de respeito pela privacidade do sr.).
Apeteceu-me hoje falar, portanto, de VIH/SIDA, ou seja, falar da pessoa com 70 anos, casada há 50... falar do jovem estudante universitário e futuro advogado... falar da criança que joga à bola todos os dias no parque. Surpreendidos? Esperavam que falasse de outras pessoas? Que mencionase talvez a pessoa homossexual ou toxicodependente? Perdão, por lapso esqueci-me de falar TAMBÉM delas. O VIH é um vírus que contraimos por ter um comportamento de risco e não por pertencermos a um determinado grupo da sociedade. Nós todos somos possíveis portadores de VIH e assim, as pessoas que o têm não são diferentes de nós. São boas e más pessoas, porque em todas as pessoas que se cruzam connosco na nossa vida, encontramos boas e más pessoas. São ricas e são pobres, velhas e novas, felizes e infelizes, sorridentes e carrancudas. São pessoas com uma doença, tal como a pessoa com Diabetes ou a pessoa com Epilepsia, e não levam tatuado na testa o rótulo de pessoa com "HIVzito". Para isso estão as equipas de saúde (maqueiros, TAT, TAS, auxiliares, enfermeiros, médicos...) para os colocar. É triste, mas é verdade. Para a vizinha era normal, para a equipa de saúde era um bicho de sete cabeças...
E fico triste ao dizê-lo. Triste ao ver hospitais que não aceitam doentes com SIDA com o pretexto de não terem condições para os receber (condições?...). Triste por perceber que ainda existe preconceito e estigma. Triste por perceber que ainda se têm ideias erradas, mesmo entre pessoas que tiraram o mesmo curso que eu.
"... a ignorância é a base fundamental para todo o processo de discriminação ..."
(Cláudio e Mateus, 2000. p.40)

1 comment:

la parisienne said...

já pensaste em enviar este texto para um jornal ou revista de enfermagem, ou mesmo para outro mais geral, como artigo de opinião?

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