Sunday, March 25, 2007

Corredores... cheiros... e músicas...

São 5h30. Mais uma noite no serviço de corredores escuros e carregados de histórias. Mais uma noite em que os corredores ficaram mais pesados. Não temos tempo sequer de conhecer as suas histórias, o que os traz por cá... mas partilhamos com eles alguns dos momentos mais íntimos de alguém... os seus últimos momentos de vida e tudo o que isso significa. Respiro de alívio... amanhã é segunda-feira, isto porque sendo dia de semana quem liga às famílias é a chefe. Não gosto de o fazer. Custa-me sentir que um silêncio é pouco e qualquer palavra é demais. Fico calada, oiço chorar e gritar do outro lado. E não posso dizer nada. Não posso, porque não entendo o que sentem e fingir que entendo é sentir que lhes estou a mentir. Sei que o fim do sofrimento é para eles uma libertação e agarro-me a essa ideia enquanto lembro aqueles mail's que se reenviam, e um deles em especial... entre afirmações algo "foleiras", a frase "a partir daquele dia passei a viver mais todos os minutos da minha vida, e menos a sobreviver a eles". A vida é uma linha ténue.
Cheiros... porque também deles é feito o meu percurso nesta noite. A importância dos cheiros na nossa vida: o que lembram, o que sugerem, o que nos fazem sentir, os sabores que despertam. Hoje, o cheiro áquele saco que abomino, aquele que depois de sair daqui, é apenas um saco transportado de um lado para o outro. Aqui, umas horas antes, uma pessoa. Os cheiros dos líquidos orgânicos com que qualquer enfermeiro se depara no seu dia-a-dia e que nos despertam para a presença de infecções, de hemorragias... O cheiro do primeiro ramo de flores que recebi. O cheiro característico de uma bola e de um pavilhão de basketball, que me lembram os treinos e jogos da equipa do meu irmão na Galiza. O cheiro da comida da minha mãe. O cheiro do Tommy do chinês que temos no serviço e colocamos nos doentes após o banho, que sorriem por se sentirem mais "janotas". O cheiro do meu Miracle. O cheiro da pele das pessoas que abraçámos muito próximas de nós e que nos arrepia. O cheiro das canetas de cores que tinha às dezenas na primária e enchiam o meu estojo até estar a abarrotar. O cheiro a cloro das piscinas onde aprendi a nadar. O cheiro que dizem que emitimos quando estabelecemos relação com o outro e que leva à atracção (há quem o chame de borogodó...). O cheiro que tenho agora de látex e sterilium nas mãos. O cheiro do mar, sem mais. Os cheiros que nos lembram (recorro mesmo muito à memória Sara, tens razão), os cheiros que vivem connosco, que vamos conhecendo... os cheiros, alguns dos quais me fazem agora deitar uma pequena lágrima, refugiada nesta sala sozinha, pronta para daqui a nada voltar novamente aos que ainda cá estão e precisam um pouco do meu sorriso, algumas fórmulas mágicas de medicação e a presença de uma farda branca para os tranquilizar.
E hoje de manhã, entre Alcantara e Belém, soube bem passear a vosso lado e caminhar naquelas ruas habitualmente repletas de carros. No meio de muitos mais, crianças, adultos e idosos, todos pelo desporto, pela APAV, pelo dia bonito que estava e em que apetecia era mesmo fazer o que estávamos a fazer.
E agora, enquanto acabo... começa aquela canção... aquela canção que me transporta para tantos momentos, discussões, abraços... aquela canção que apelidámos de despedida e que transformámos na música de uma época: Erasmus. Aquela música com a qual chorei tantas vezes no carro, em viagem, sozinha. Goste-se ou não, é pelo que recordo com ela que ela me é importante. James Blunt, Goodbye my Lover... e hoje, poderá ser a música de muitos que perderam os seus nestes corredores "you have been the one for me".

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